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  19/05/2017  •  Língua  •  2038 hits  •  0 comentários ⇣

Palavra Presidenta X Gente embirrenta

Presidenta, a palavra, já incitou muita polêmica. Volta e meia, durante a presidência de Dilma Roussef, alguém fazia (e, às vezes, ainda faz) algum tipo de referência, reprovando o termo, na certeza do equívoco deste. Chegava a ser enjoativo. Até no Superior Tribunal Federal - STF (um lugar onde as pessoas devem saber bem o português) já fizeram ironia, justificada pelo "amor à nossa língua portuguesa". Mas o mais incrível é constatar quantos "especialistas" em Português Brasileiro apareceram depois da eleição de Dilma - incluindo alguns que mal sabem identificar numa frase onde existe uma crase - e que se valem de algum tipo de regra de nossa língua para legitimar sua rejeição. Você, com certeza, também já viu pessoas criticando ou já leu algum tipo de postagem em sites ou nas redes sociais fazendo troça com "presidenta". Nestas postagens e comentários pessoais fica evidente um detalhe que entre seus autores é claramente comum: a posição político-partidária. Para ser mais claro, funciona assim: quem simpatiza com a ex-Presidenta Dilma, aceita e utiliza a palavra. Quem não simpatiza (ou simplesmente a abomina), execra a palavra.

Para os detratores, "presidenta" é como se fosse um insulto, um verdadeiro atentado ao nosso léxico. É como se quem falasse tal palavra absurda estivesse cometendo um crime contra nossa língua. Coitada de "presidenta". Apenas um inocente conjunto de fonemas que já foi criado há muito tempo, dicionarizado e mantido "de molho" até que uma pessoa eleita pela população resolveu trazê-lo à tona para usá-lo - dentro de seu direito - como denominação de seu cargo político. Estava instalada uma polêmica, diga-se de passagem, totalmente sem sentido.
 
Pois bem, consultando meu dicionário NOVO AURÉLIO - SÉCULO XXI, do já falecido acadêmico Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (Academia Brasileira de Letras / Academia Brasileira de Filologia), percebi que o termo já existia de fato. Este meu exemplar data de 1999 e, nessa época, já estava na 3ª edição. Na página 1633 (para ser bem preciosista) aparecem, como significado de quem preside, dois termos: Presidente e sua flexão feminina, Presidenta. 

Os significados que o dicionário apresenta para os dois gêneros são muito similares:
• Presidenta [Fem. de presidente] - Mulher que preside. Mulher de um presidente.
• Presidente [Do latim praesidente] - Pessoa que preside. Pessoa que dirige os trabalhos de uma assembléia ou corporação deliberativa. O presidente da República.

Ok, mesmo que a palavra tenha as duas flexões, não quer dizer que signifiquem exatamente a mesma coisa. No caso de governante, por exemplo, existe seu feminino governanta, porém com um significado ligeiramente diferenciado. Mas existe também flexão de gênero para prefeito (prefeita), deputado (deputada) e vereador (vereadora). Já para governador, existem três flexões para o gênero feminino: governadora, governadeira e governatriz. Então, para quem exerce a ação de governar, existem, entre gênero masculino e feminino, 5 verbetes no total, sendo alguns destes desconhecidos para a maior parte da população. Mas no caso de "presidir" existem dois verbetes e significam, de fato, a mesma coisa,

Voltando à palavra presidenta, o curioso em sua cronologia é que ela data desde o século retrasado. É o que afirma o professor brasiliense Marcos Bagno em seu livro "Preconceito Linguístico". Lá ele cita exemplos de três dicionários que aceitam a palavra. Um, o Houaiss, que data de 2001, outro, o Aurélio, que data de 1975 e o Caldas Aulete, que data de 1881, sendo que o Houaiss acusa a existência da palavra desde 1872! Isso dá mais de 140 anos, o que quer dizer que "presidenta" é mais velha que qualquer crítico que se posicione contra ela e, apesar de já ter uma existência bastante antiga, a gente percebe que o termo sempre usado foi Presidente. Provavelmente porque o Brasil nunca teve um presidente do sexo feminino, e também, porque presidentes de empresas e instituições sempre foram homens (o que, felizmente, está mudando cada vez mais). 

Vale frisar que o sufixo "nte" compõe palavras que simbolizam o praticante de uma ação, independente de seu gênero, como nos exemplos abaixo.
 
• Quem pratica é praticante
• Quem trafica é traficante
• Quem governa é governante
• Quem persiste é persistente, e, portanto,
• Quem preside é presidente.

Essa desinência "nte" corresponde a um antigo tempo verbal latino chamado "particípio presente" (ou particípio ativo). Termos originados do particípio presente são considerados de valor verbo-nominal, ou seja, se originaram de verbo mas adquiriram outra característica que pode ser de substantivo, adjetivo ou advérbio. As gramáticas, hoje em dia, já não consideram mais o particípio presente, mas apenas o particípio passado, que são palavras de valor verbal com terminação que sugere ação concluída tipo "falado", "trabalhado" ou "realizado" - e que permitem flexão de gênero e de número como "trabalho realizado" ou "tarefas realizadas". 

Em português o tempo verbal que mais se aproxima do particípio presente é o "gerúndio". O gerúndio é um tempo que não permite flexão de gênero e nem de número e é caracterizado pela terminação "ndo" como em "falando", "trabalhando" e "realizando". No entanto, o gerundivo, que era uma forma verbal latina, gerou para o nosso português palavras com características de substantivo e de adjetivo que podem ser flexionadas tipo "memorando > memorandos", "graduando > graduandos", "formando > formandos/formandas", "vestibulando > vestibulandos/vestibulandas", etc. Era considerado um particípio futuro porque exprimia uma ação que estava prestes a se realizar mas que ainda não estava concluída.

Então, quando se fala em particípio, hoje, se considera apenas o particípio passado, portanto a justificativa de que "presidente" - que além de tudo é uma designação de cargo - não pode ter flexão de gênero porque é particípio presente soa meio obsoleto. É como falar que, se esta regra vale hoje como valia séculos atrás, poderíamos escrever ainda farmácia com "ph" e sem acento (pharmacia), o que já não acontece desde o acordo ortográfico de 1911 (e ninguém hoje em dia fica chorando de saudade desta grafia). Não quero dizer que as palavras originadas do particípio presente devam ter flexão (como governanta), apenas que "presidenta" já foi criada há quase um século e meio, tem caráter de substantivo (portanto, passível de flexão), já está dicionarizada mas as pessoas ficam buscando meios de invalidá-la através de alguma regra ultrapassada.

O pior de tudo é que, como eu abordei no início do texto, o principal fator que origina essa repulsa a "presidenta" é justamente a repulsa à ex-Presidenta. É um fator de caráter político-partidário. Antes eu achava que era motivação ideológica, mas ideologia, não necessariamente tem a ver com partidos - já deixei de ser petista há muitos anos mas continuo com minhas ideologias. Gostar ou não da ex-Presidenta já é uma outra questão, mas o que não dá pra engolir é essa argumentação forçada de que "presidenta" não pode existir por causa de regras gramaticais. Várias palavras existem sem, necessariamente, obedecer a regras gramaticais e falamos elas sem nos dar conta e sem reclamar, como é o caso dos verbos irregulares, que são irregulares justamente por não obedecerem a regras. Palavras que são incorporadas à nossa língua vindas de outras línguas também não são questionadas por nós se foram criadas em sua língua de origem em cima de regras. Da mesma forma que quando aprendemos um idioma estrangeiro (inglês, italiano, japonês) não ficamos patrulhando palavras desse idioma para saber se é ou não conveniente falarmos. Simplesmente aprendemos e ficamos satisfeitos porque adquirimos a capacidade de nos comunicar com os falantes desses outros idiomas, ainda que não de uma forma tão natural quanto eles.

Há casos em que palavras precisam ser criadas para atender a uma nova necessidade da língua. Qualquer linguista ou professor de português sabe disso. Mas num caso como a LEI Nº 12.605, de 2012, sancionada por Dilma e que determina que palavras relacionadas a cargos/profissões tenham flexão de gênero, não convenceu. Com certeza, as flexões criadas para estas situações vão soar artificiais e desnecessárias.

O argumento do "amor à língua", aquele que nos faz respeitar os termos considerados corretos e repelir os que parecem absurdos é outra justificativa que não convence. Recusamos falar determinadas palavras por causa do nosso amor à língua, como se a língua nos proporcionasse, por si só, uma satisfação especial. É como se a língua fosse uma música, uma pessoa ou um local particular, que nos remete a sentimentos e lembranças, e não um simples (porém complexo) recurso de comunicação. Amor ao estudo da língua, como no caso dos linguistas, é perfeitamente compreensível, mas amor à língua em si, esse ente abstrato, que por si só não diz nada e que para existir depende de outros entes concretos como nós, é meio esquisito. Um argumento tão sólido quanto um pudim de gelatina e tão denso quanto o vácuo absoluto.

É certo que todas as coisas se transformam, o que inclui a língua. E para se transformar, a língua precisa da criação e incorporação de novas palavras e da readequação das existentes. Se a gente se opõe, é certo que a língua deixará de se adaptar às nossas necessidades e, portanto, deixará de exercer ao seu fim principal que é o de nos servir. Enquanto nós passamos, a língua fica, mas ela só continua existindo porque nós a exercitamos e a transformamos. Ninguém é obrigado a gostar de nada e nem de ninguém - e muito menos de um simples vocábulo -, mas se a gente, ao invés de estudar, fica se posicionando contra algumas pobres palavras - como se elas prejudicassem nossas vidas só porque não gostamos - com certeza ainda vamos ficar com aquelas tolas piadinhas que falam "ginecologisto", "estudanta", "gerento" e outras supostas flexões que ainda não foram inventadas, mas que só demonstram nossa ignorância em relação à nossa própria língua que dizemos que amamos. Regras são importantes, mas nem sempre é o que definem a pertinência para a existência de determinados termos, e não devem servir para justificar nosso preconceito e nossa birra com alguma entidade político-partidária. Este artigo, aliás, não foi feito para defender a ex-Presidenta, mas simplesmente para repensar a pertinência de palavras como "presidenta".

Enfim, não foi Dilma e nem o PT que criaram "presidenta" - mesmo que quem odeie o partido jure isso de pé junto e mesmo que Dilma (ou alguma outra mulher) nunca mais seja eleita. Mas, independente disso, essa palavra continuará sendo falada por alguns milhões de brasileiros (mesmo que não seja por você) e continuará fazendo parte de nosso vocabulário, a despeito de sua suposta impertinência. Assim atestam diversos e conhecidos professores de português, os grandes dicionários e o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, o VOLP.

Referências:
• IG - último segundo - histórico palavra presidenta
• QI Educação - Infinitivo, Gerúndio e Particípio
• Filologia.org - Formas verbo-nominais latinas - ressonâncias em português
• Filologia.org - As formas em -nte no português contemporâneo
• Ciberdúvidas - Particípio presente
• Ciberdúvidas - Gerúndio / Particípio presente
• Wikipedia - Formas nominais do verbo
• Wikipedia - Particípio presente
• PDF - Gerúndio versus Infinitivo Gerundivo: Brasil e Portugal - Núbia Mothé
• Livro Preconceito Linguístico - Marcos Bagno - 56ª edição - 2015



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